sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Cidade de Deus


“É claro que nem o filme nem o romance seguem fielmente a história da criminalidade em Cidade de Deus, porque seria documentário ou histórico (ciência), respectivamente. (...) O meu compromisso é com o real da obra de arte e não imediatamente com a realidade histórica que queremos mudar.”

Fernando Meirelles



I – AUTOR:

Fernando Meirelles nasceu em 9 de novembro de 1955, em São Paulo (SP). Seu pai é médico gastroenterologista e, por conta disso, viajou diversas vezes para a Ásia e América do Norte, o que possibilitou a Meirelles conhecer diversas culturas, ainda jovem.
Aos 12 anos, ganhou de presente sua primeira câmera de filmar. O que era para ser um passatempo, jamais saiu de suas mãos. Mesmo quando na década de 80, cursou Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo (USP). Seu trabalho de graduação foi aprovado com a nota mínima, pois diferente de seus colegas, apresentou um filme como conclusão do curso.
Na mesma época fundou, juntamente com quatro amigos (Paulo Morelli, Marcelo Machado, Dário Vizeu e Beto Salatini) a produtora independente Olhar Eletrônico. Em 1982 a produtora levou ao ar programas de televisão sobre atualidades, além da série infantil Ra Tim Bum, com mais de 180 episódios.
No final da década de 80 sua aproximação com o mercado publicitário era cada vez maior. Em 1990, fecharam a produtora para fundar a O2 Filmes. Em pouco mais de uma década a empresa se tornou uma das principais do país no segmento.
Depois de alguns trabalhos para TV, em 1998 dirigiu seu primeiro longa-metragem para o cinema: a continuação do filme infantil O Menino Maluquinho. Quatro anos depois, com o filme Domésticas, conquistou diversos prêmios em festivais nacionais.
Mas a grande virada de sua carreira viria em 2002. Dirigindo o aclamado, Cidade de Deus, seu trabalho ganhou uma repercussão internacional, sendo considerado um dos melhores filmes da década e um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. O sucesso foi tão grande que o filme recebeu quatro indicações ao Oscar, uma delas para Meirelles na categoria de Melhor Diretor.
Em 2005, firmou-se como um dos mais importante diretores internacionais ao levar para o cinema O Jardineiro Fiel. O trabalho lhe valeu uma indicação ao Globo de Ouro e outra ao BAFTA, ambas na categoria de Melhor Diretor.
Seu mais novo filme é Ensaio Sobre a Cegueira, baseado na obra do escritor português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura.
Fernando Meirelles é casado com Ciça Meirelles e pai de dois filhos: Francisco e Carolina.

II – TEMÁTICA


"Não é você quem assiste ao filme e, sim, o filme que assiste você. Cidade de Deus é mais que um filme com uma mensagem, é um tapa na cara em forma de filme.”

Arnaldo Jabor


Baseado no livro de Paulo Lins, esta crônica do submundo do crime carioca tomou dois anos de sua vida e de sua carreira. Paulistano, Meirelles mudou-se para o Rio para exercitar os talentos locais da favela Cidade de Deus e, então, recrutá-los para o filme.
Cidade de Deus tem como núcleo central o fenômeno da violência e da criminalidade. Se este fenômeno pode ser estudado via depoimentos e estudos sociológicos, a abordagem ficcional não é menos rica, pois a percepção fina e acurada do artista, ao recordar a realidade para montar sua obra, produz intensos e valiosos efeitos de verdade.
Assistir a Cidade de Deus é uma revelação - revelar o apartheid social que existe no Brasil e que a classe média e a elite dirigente não é capaz de enxergar. Estado, leis, cidadania, política, educação, perspectiva e futuro são conceitos abstratos, mera fumaça quando vistos do outro lado do abismo.
O filme é feito de dentro para fora da favela. Um filme sem cenários e sem técnicas de interpretação, aliás, sem atores profissionais, mas com garotos que vivem aquela realidade, e que podem nos trazer ao menos a sensação do que é viver à margem.
Cidade de Deus não fala apenas de uma questão brasileira e sim de uma questão global. De sociedades que se desenvolvem na periferia do mundo civilizado. Da riqueza opulenta do primeiro mundo, que não consegue mais enxergar o terceiro ou quarto mundo, do outro lado ou no fundo do abismo.
A análise do filme vai além do mero determinismo. Procura revelar uma análise sem dissociar o homem da sociedade nem a sociedade do homem. É um mergulho nas raízes psicológicas da crueldade, da compulsão, da astúcia e da angústia dos jovens que vivem excluídos do sistema da produção. Desigualdade, discriminação e preconceito são esferas do cotidiano dos excluídos brasileiros.
O filme não se preocupa em fazer marcações rígidas e foge do clichê entre o bem versus o mal. Afinal, o grande mérito do filme é questionar o papel e a responsabilidade de todos. Para Kátia Lund “a violência e o tráfico é um problema social e não policial.” Assim, o filme cumpre seu papel social de todas as formas possíveis.


III - PRÊMIOS:

Depois de uma bateria de prêmios no exterior (incluindo os festivais de Havana, Toronto, Cartagena, Marrakesh e Uruguai), o filme veio ao Brasil e se tornou um massivo estrondo de bilheteria, expondo um potencial nunca imaginado para produções nacionais.
A carreira brilhante de Cidade de Deus não terminaria aí, mas viria a ser interrompida com a fracassada tentativa de uma vaga entre os indicados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2003. O presidente da Miramax, distribuidora do filme nos EUA, no entanto, não desistiu e, graças a uma brecha nos procedimentos da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (A.M.P.A.S.), relançou o filme em janeiro daquele ano, tornando-o novamente elegível, agora nas categorias principais.
A estratégia deu certo: o filme ficou quase todo o ano em cartaz, levando prêmios de quase todas as associações de críticos dos EUA (Nova York, Dallas, Las Vegas, Chicago e Boston) e o cobiçado BAFTA. A exposição atraiu a atenção dos membros votantes da Academia, e o resultado foram às quatro inéditas e vitoriosas indicações do filme para o maior prêmio do cinema. Sua vitória em qualquer uma delas seria mera eventualidade: o reconhecimento já era significativo, insubstituível e digno de aplausos.


IV – CONTEXTO HISTÓRICO SOCIAL:


A década de 60 é marcada pelo inicio da ditadura militar. O movimento militar de 31 de março de 1964, responsável pela queda de João Goulart, considerava-se revolucionário e regenerador, pois, seus ideais purificadores, iriam libertar o país da corrupção e do comunismo. O regime militar se impunha por meio de violência e pela força, anulando a democracia e a participação popular, seja por meio da repressão, seja pela censura aos meios de comunicação e também pela eficiente propaganda do governo cuja TV Globo, tornou-se beneficiada e porta voz.
Na área econômica, o período militar, com o objetivo de promover o desenvolvimento, realizou o “Milagre econômico”.
Tratava-se de uma combinação de crescimento econômico com taxas relativamente baixas de inflação. Uma proposta de modernização e reforma do Estado. Entre 1968 e 1969 o país cresceu num ritmo impressionante, registrando a variação respectivamente de 11,2% e 10,0 do PIB o que resulta em 8,1% e 6,8% no cálculo per capita.
A média do PIB anual foi de 11,2% sendo o pico, em 1973, cujo índice foi de 13% contra uma inflação anual de 18%, em contraste com o período anterior, cujo crescimento inflacionário girava em torno de 25,4%.
O “Milagre” deixou como herança os aspectos negativos de natureza social. Apesar de o PIB ser um indicador do estado geral da economia, seja em números brutos, seja per capita, ele não exprimia a distribuição da renda. A política econômica dos tecno- burocratas pretendia fazer o “bolo crescer para depois dividi-lo”. Privilegiou-se assim a acumulação de capitais sem, contudo distribuí-los. Ao contrário, o salário dos trabalhadores acabou comprimido em contraste com a classe média que teve um aumento de seu poder de consumo. Tudo isso resultou em uma concentração de renda acentuada que vinha de anos anteriores, levando a desproporção entre os avanços econômicos e o retardamento e abandono dos programas sociais do Estado.
Atualmente, o Brasil é um país que possuí uma posição destacada pelo seu potencial industrial em contraste os seus baixos indicadores de saúde, educação e habitação.


V – CARACTERÍSTICAS:

“Movimentando-se esteticamente entre a ficção e o documentário Cidade de Deus compõe esta lista de filmes com o objetivo de contribuir com a variedade e originalidade das formas atuais do cinema nacional. Vale neste caso lembra que foi um filme indicado a quatro Oscars pela sua “forma realista” de apresentação da realidade por meio desse código complexo que é o cinema. A trama se dá em um dos locais mais violentos do Rio de Janeiro e por meio de uma câmera uma personagem registra e analisa o dia a dia da favela, livrando-se, ao mesmo tempo, de compartilhar daquela forma de vida.” (WWW.fgvsp.br)


Cidade de Deus retrata a ascensão do tráfico de drogas de forma chocante e realista. Baseando-se em uma pesquisa etnográfica documental, Paulo Lins faz uma análise psicológica das personagens, evitando a visão de fora, uma visão pequeno-burguesa.
Trata-se de uma história de miséria, sofrimento, dor, angústia e morte, onde a violência é uma linguagem e a sobrevivência uma palavra escrita com sangue.
Evitando os sentimentalismos piegas e os ensaios psicológicos da modernidade; mas, sem ficar pela superficialidade estética da violência; realçando o essencial sem nenhum excesso e com uma inacreditável verossimilhança, o diretor descreve e explica, de forma quase didática, o aparecimento, a consolidação e o funcionamento cotidiano da máquina do crime num aglomerado urbano. Apresentando um submundo com suas relações de poder e interesse; as lealdades e os silêncios; as divisões territoriais; a economia assente nas drogas; a simbiose com a sociedade que a envolve; a organização hierárquica e até a sociologia da violência, Cidade de Deus é o reflexo de uma política nacional de um país doente, que se deixou levar por todos os preconceitos estúpidos.
Alternando momentos poéticos de forma lírica com outros em que a violência é animalesca, o filme registra o crescimento de uma urbanidade desumana, distanciando-se do contexto político e social que constituiu a realidade da Cidade de Deus.
O filme, assentado numa estrutura épica da modernidade, não necessariamente respeita tempo ou ação dramática.
Sua essência dialoga com um espectador alienado que insiste em não ver uma realidade muito próxima.
Cidade de Deus não apresenta uma personagem principal, pois é próprio meio, o momento e a raça que determinam a trajetória das personagens, exceto Buscapé que não se deixa corromper pelo sistema.
A miséria é limitada à sua insignificância, a um simples pano de fundo; a sensualidade é explicitamente sugerida; a beleza da Cidade Maravilhosa passa despercebida, para retratar uma estória de sangue, suor, lágrimas e culpa. Enfim, um “Rio de Janeiro longe dos cartões postais”, entre as décadas de 60, 70 e anos 80.



VI – ESPAÇO E TEMPO

O verdadeiro protagonista é a própria Cidade de Deus.
Construída pelo governo de Carlos Lacerda entre 62 e 65 na zona oeste do Rio de Janeiro, a Cidade de Deus é um núcleo habitacional que foi povoado por moradores de áreas atingidas pelas enchentes mais fortes que a cidade já havia enfrentado em sua história.
Erguida num espaço inóspito, sem infra-estrutura, luz e esgoto, o conjunto era a esperança de vida melhor para centenas de famílias, mas se tornou um dos lugares mais perigosos do Rio de Janeiro, no começo dos anos 80.
Poucas cenas se passam fora da favela.



VII – ESTRUTURA:

“Para que o espectador compreendesse a evolução do tráfico e a transformação da Cidade de Deus no período de 12 anos, decidi dividir a história em três fases, dando a cada uma delas características distintas como se fossem três filmes diferentes. Isso daria a sensação de transformação e evolução do crime” (MANTOVANI, MEIRELLES, MULLER, 2003, p. 20)
O filme apresenta o contexto social, político, econômico e cultural carioca dividido em três histórias: A História de Cabeleira; A História de Bené e A História de Zé Pequeno e através da óptica da personagem Buscapé, elo intermediário entre as três histórias, no bairro carioca Cidade de Deus, entre os anos 60 e o início dos anos 80.
Em Cidade de Deus o elenco contava somente com atores novatos que foram escolhidos entre garotos que vivem em diversas favelas e comunidades do Rio de Janeiro, e que não tinham tido qualquer contato com atuação, escolhido entre garotos que vivem em diversas favelas e comunidades do Rio de Janeiro, e que não tinham tido qualquer contato com atuação, exceto Matheus Nachtergaele (Sandro Cenoura).
A produção do filme passou cerca de quatro meses em laboratório com esses atores, fazendo com que existisse uma integração entre eles, como se eles realmente se conhecessem há muito tempo, tivessem crescido juntos, ou criando rivalidades. Uma passagem que pode ser citada, sem que se estrague a surpresa do filme, é o do Caixa Baixa, um grupo de crianças com idade entre seis e doze anos que cometem pequenos assaltos, ao vê-los juntos, em um assalto, o espectador tem a sensação que realmente existe irmandade que há entre eles.
A linguagem é coloquial e repleta de palavrões em seus diálogos, acentuando o objetivo de chocar ao espectador, mas que se dissolvem diante do contexto social e cultural do espaço.

Cidade de Deus apresenta uma ruptura com a linearidade e é dividida em três partes:

I Parte: anos 60


Buscapé segue sua vida evitando envolver-se com os hábitos condenáveis, embora fume maconha eventualmente, e, com os conflitos locais, principalmente com Zé Pequeno, mesmo sabendo que ele foi o assassino de seu irmão no tempo do Trio Ternura.
Buscapé sonha ter uma namorada e futuramente, um emprego como fotógrafo.



III Parte: final dos anos 70 e início dos anos 80

Na primeira parte do filme é apresentado o nascimento da Cidade de Deus: as brincadeiras infantis; as “peladas”, onde assistimos Buscapé ainda criança levando um gol; a paisagem acinzentada; a formação das casas disformes; a ingenuidade e a inocência das crianças que ainda prevaleciam no local; as aventuras do Trio Ternura e as personagens, Dadinho e Bené, uma quadrilha de criminosos iniciantes. Essa parte é composta pelo: prólogo; apresentação; assalto ao caminhão de gás (Dadinho faz a proposta do assalto, o que irrita Marreco); o assalto ao motel (os cadáveres dos funcionários e clientes do motel); a separação de Alicate, Marreco (irmão de Buscapé) e Cabeleira, com cada um lidando com a cumplicidade e as consequências do assalto, além da preocupação com a busca policial.
Alicate se machuca, arrepende-se e busca regeneração na igreja; Marreco apanha do pai e Cabeleira se esconde na casa de Maracanã e se envolve com Berenice.
Em paralelo a eles, temos Paraíba, agindo como delator.
A transição do tempo é acompanhada por um clip que acentua o final desta sequência e o inicio da próxima: fuga do motel; complicações e fim do Trio Ternura (letreiros identificam que passaram seis meses). Esta sequência inicia-se quando Cabeleira recebe uma intimação de Berenice para levar uma vida de “otário”; Marreco volta a trabalhar como peixeiro (junto com Buscapé), engraça-se com a mulher do Paraíba, toma dinheiro de Dadinho e foge.
Paraíba assassina sua esposa, a polícia descobre e a imprensa chega. Cabeleira tenta fugir com Berenice e Paraíba vê (no momento em que está sendo preso), concluindo com a morte de Cabeleira, pela polícia.
A sequência encerra-se com Buscapé admirando a máquina fotográfica de um repórter, no momento em que este fotografa o cadáver de Cabeleira e, a partir dessa observação, desenvolve em Buscapé, o sonho de vir ser fotógrafo.
Ainda nessa década, o Trio Ternura é desfeito, depois do trágico assalto ao motel com a participação de um garoto chamado Dadinho.


II Parte: anos 70

"Se a droga fosse liberada naquela época, o Zé Pequeno seria eleito o Homem do ano".

Buscapé



Na segunda parte, devido à expansão demográfica e o desenvolvimento do local, a comunidade adquire estrutura de uma grande favela, atraindo o crime, a repressão, as drogas e o tráfico. No âmbito cultural, os moradores são atraídos pelo modismo da época: calça boca-de-sino, cabelos black power, camisas Hang Tem, danceterias e ritmos músicas de época.
A ideologia pacifista da época é contracenada pela violência e a disputa dos traficantes pelo controle dos pontos de drogas, “as bocas”, porém, aparentemente disfarçada, imperando a lei do silêncio.
O pequeno Dadinho, participante do assalto do motel, adquiriu a maioridade; transformou-se em Zé Pequeno, o bandido mais perigoso do local; substituiu o mundo dos assaltos pelo mundo do tráfico e tornou-se um dos maiores detentores das “bocas” na comunidade, tendo como maior rival, Cenoura, outro traficante temível.


De acordo com o projeto, o prólogo que abre o filme pertence cronologicamente à Parte III. Isso acontece, pois o filme nos é narrado numa série de “voltas”, sendo a mais ampla esta diagramada anteriormente.
O desfecho do filme acontece nos anos 80, quando a Cidade de Deus já é uma favela gigantesca, e o tráfico está cada vez mais forte e desumano.
A violência na Cidade de Deus está descontrolada, crianças de faixa etária de dez anos, conhecidas por bando da Caixa-Baixa, praticam assaltos descaradamente.
Até o pacato Buscapé acaba corrompendo-se e entra para o mundo do crime, tenta um assalto frustrado em um ônibus. Desse episódio desencadeará sérios conflitos.
Mané Galinha, o cobrador de ônibus, é um trabalhador digno que tenta sobreviver honestamente na Cidade de Deus. Mas, o destino o levará ao delito.
Na época, Zé Pequeno dominava a Cidade de Deus. Era temido e respeitado, ao mesmo tempo, “deus” de toda aquela dor e miséria.


Zé Pequeno está na reta final de ter todo o domínio do tráfico e eliminar Cenoura, seu rival e concorrente. E então a fatalidade promove o encontro entre Zé Pequeno e o Mané Galinha. Zé Pequeno estupra a namorada, mata seu irmão e destrói à bala a casa de Mané Galinha. Cego de vingança o ex-cobrador ataca o bando de Zé Pequeno e se alia ao grupo do Cenoura.



VIII – EVOLUÇÃO DAS PERSONAGENS:


A obra inicia-se com uma cena extraordinária de uma perseguição de um galináceo contracenando com o narrador da história, um garoto encurralado entre duas fileiras de pessoas armadas: de um lado, os traficantes e, do outro, os policiais, tendo no meio desse confronto, a população imparcial da favela. acompanhada pela frase: ”se correr, o bicho pega. Se ficar, o bicho come”.
Mas, essa imparcialidade é ameaçada quando pressionada, tornando-se principal responsável e mantenedora das mazelas sociais a que estão vinculadas, principalmente pelo silêncio e pela conivência.
Afinal, são os moradores da favela que escondem e aceitam os favores dos traficantes; além de acatarem o tema de “justiça pelas próprias mãos”.
Nessas primeiras cenas, o cenário é repleto de diversidade de animais, desde a galinha perseguida no início até as vacas e cavalos que percorrem as ruas da favela, passando pelos peixes que são vendidos pela família do narrador.
Entretanto, o animal mais presente é o cachorro: representação de fidelidade, cumplicidade, dependência e agressividade, - uma alegoria dos habitantes desse universo.
Para contar a estória desse lugar, o filme narra à vida de diversas personagens, todas vistas sob o ponto de vista do narrador, Buscapé.
Este, um menino pobre, negro, muito sensível e bastante amedrontado com a ideia de se tornar um bandido; mas, também inteligente suficientemente para se resignar com trabalhos quase escravos.
Buscapé cresceu num ambiente bastante violento. Apesar de sentir que todas as chances estavam contra ele, descobre que pode ver a vida com outros olhos: os de um artista. Acidentalmente, torna-se fotógrafo profissional, essa foi sua libertação.
Buscapé não é o verdadeiro protagonista do filme; afinal, não é o único que faz a estória acontecer; não é o único que determina os fatos principais. No entanto, não somente sua vida está ligada com os acontecimentos da estória, mas também, é através da sua perspectiva que entendemos a humanidade existente, em um mundo aparentemente condenado por uma violência infinita.
A matéria prima do romance veio de uma pesquisa sobre a criminalidade na favela carioca Cidade de Deus, da qual participou o autor. A partir de personagens reais e fatos ali ocorridos, Lins construiu seu enredo, situado nos anos 60, 70 e 80, mostrando como o tráfico de drogas se iniciou timidamente, apenas mais uma entre várias práticas marginais, como assaltos e roubos, até se instalar como atividade principal das gangues. Vemos ali, a força e o poder econômico que essas novas quadrilhas atingiram, a ponto de ser hoje um poder paralelo, que desafia e controla parte do estado, impondo suas próprias exigências.
Tanto o romance como o filme focalizam a extraordinária violência da fração marginal, mas não estão preocupados em fazer um relato documental como um todo. Em sua rica complexidade social, a favela mescla trabalhadores honestos e bandidos, em áreas bem delimitadas e discriminadas, segundo o próprio autor.
É necessário não confundam favelados com marginais. Embora ambos convivam em situações muitas vezes sub-humanas, miseráveis e de exclusão, nem todos reagem da mesma forma a essa privação. O que faz com que frente à miséria e suas condições degradantes, alguns optem, se é que podemos falar assim, pelo crime, e outro não.
O filme entrecruza várias histórias diferentes, o núcleo narrativo mais duro está centrado em três adolescentes e seus irmãos menores, entre eles o narrador Buscapé, que centraliza e unifica os diversos episódios contados em flash back e a dupla Bené e Dadinho, que terão grande destaque no desenvolver da trama.
Na primeira fase, os adolescentes executam pequenos golpes e assaltos. Não planejam matar ninguém em suas incursões. Se isso ocorre deve-se mais a um imprevisto inoportuno do que a uma ação planejada.
O autor mostra a marginalidade num momento pré-tráfico de drogas, coisa que se alterará completamente na década seguinte.
O episódio que mostra o final trágico dos três adolescentes e o posterior, que trata da irrupção franca do tráfico, estão ligadas pela personagem Dadinho.
Na primeira fase do filme, vê-se Dadinho, uma criança que se diferençava pela intensidade assustadora de sua violência e agressividade, olhando fascinado para uma arma e apontando para Marreco (de quem recebe um tapa). Mais tarde, Dadinho oferece uma arma para Marreco pouco antes de usá-la para matá-lo. Em seguida, vê-se uma série de planos rápidos de Dadinho rindo e atirando.


Dadinho, adolescente ou jovem adulto, vai a um pai de santo que o rebatiza com o nome de Zé Pequeno, prometendo-lhe imunidade contra os inimigos, principalmente o Cenoura, seu rival, caso usasse um determinado amuleto. A partir daí, Zé Pequeno se transforma num chefão da droga. Instaura um reino de terror e violência, apenas mediado pelo amigo Bené, que muitas vezes o contém no extravasar da mais pura violência. Outro detalhe que merece destaque é a maneira impositiva como Zé Pequeno, segura e maneja um revólver.
A composição de Buscapé é igualmente interessante. A personagem é associada diretamente a um objeto: a máquina fotográfica e esse fato, não só caracteriza a personagem como apresenta a sua evolução pessoal dentro do filme.
A caracterização de Zé Pequeno e Buscapé em Cidade de Deus é supostamente oposta. No caso de Pequeno, temos sua “risada fina, estridente e rápida” e esta risada serve para valorizar o sadismo dessa personagem, que ri dessa maneira principalmente quando mata alguém. Esta contraposição entre uma risada e um ato de violência serve para gerar algum temor nas demais personagens, como nos confirma Buscapé após a tomada da Boca dos Apês, e para gerar antipatia junto ao espectador.
Em determinado momento, Bené se apaixona. Planeja abandonar o crime e viver em outro lugar. Faz uma festa de despedida, onde é acidentalmente morto. Essa perda radicaliza a violência de Zé Pequeno até os estertores finais.
Há alguma relação entre a máquina fotográfica e a arma: ambas são, de certo modo, símbolos de status, já que tanto Zé Pequeno quanto Buscapé, cada qual a sua maneira, assumem estes símbolos e mudam de vida. O roteiro brinca com isso, no clímax do filme, quando Pequeno ordena que Buscapé tire uma foto do grupo dele e no momento do clique da máquina fotográfica, soa o som de um tiro que atinge um dos traficantes. Neste instante surge Mané Galinha e se inicia a batalha final entre ele e Pequeno, observada pelo narrador. A foto que Buscapé faz da morte de Pequeno lhe garante emprego no jornal – o que marca sua mudança de vida.

IX - CONSIDERAÇÕES FINAIS:


O bandido brasileiro:

Longe do estereótipo dos gangsters americanos dos filmes de Hollywood (“Poderoso Chefão”, “Scarface”) que representam o capitalismo selvagem e, das anomalias psicológicas (“Psicose”, “Kannibal”); o bandido brasileiro apresentado em Cidade de Deus é fruto de descaso político-cultural e social, cujos valores morais foram desapreendidos (ou nunca adquiridos!) por circunstâncias alheias à sua vontade.
Cidade de Deus nos oferece uma verdadeira radiografia centrada não só na pobreza urbana; mas, principalmente na pobreza humana. É o retrato dos excluídos, marginalizados e humilhados. Sem acesso a escolaridade, não possuindo discurso político consistente, sem objetivo de vida (exceto Buscapé que busca melhor), eles vivem às margens de uma sociedade, dita civilizadora.
Mas, se as personagens calam-se diante da sua dura realidade; o ritmo da câmera, a trilha sonora, as cores e a linguagem do filme, conseguem influenciar a consciência do espectador e fazê-lo compreender que o desvio moral apresentado é resultante da realidade dolorosa do Rio de Janeiro ou de qualquer outra metrópole.


Buscapé

O Buscapé do livro é mostrado como uma referência positiva de alguém da comunidade: quando criança era estudioso e trabalhador, torna-se retratista, após agir muito tempo como líder comunitário da Cidade de Deus. Ele é relativamente externo ao “Movimento”, cometendo apenas um pequeno delito. No livro, é um cocota – garoto classe média-baixa da favela, branco, cabeludo e fã de rock´n´roll. A não ser pela cor de pele, este Buscapé não difere essencialmente do narrador do filme.
Mas parece haver uma motivação narrativa para esta mudança, que talvez tenha sido uma tomada de decisão inconsciente dos autores: se tivéssemos um narrador branco, que contasse a história centralizada em personagens negros, teríamos uma visão supostamente “de fora”; Buscapé está relativamente distanciado da ação principal do filme, mas ele não é um “estranho”, alheio a ela.
A equipe de criação de Cidade de Deus pareceu sugerir algo sobre isso, em pelo menos dois aspectos: a cor de pele de Buscapé e o fato de o bandido Marreco ser irmão dele: ambos têm uma origem, educação e condição de vidas semelhantes, mas Marreco se afirma burro, acreditando que por isso se tornou bandido, enquanto Buscapé é um garoto inteligente que deve estudar.


Bené


Bené, amigo de Zé Pequeno, embora faça parte do “grupo”, distancia-se dos outros pela sua boa índole, sua simpatia, lealdade e amizade.
Com sua bondade, Bené representa um contraponto à ferocidade de Zé Pequeno, como no caso de Neguinho, um dos traficantes mais espertos de Cenoura (segundo nos informa Buscapé), e por quem assume a Boca dos Apês.
Mais tarde, Pequeno toma a Boca dos Apês e deseja matar Neguinho, mas Bené, à sua maneira, o impede. Em seguida, Zé Pequeno expulsa Neguinho da favela, após este matar próximo da Cidade de Deus. Novamente Bené salva Neguinho, mas desta vez Pequeno repete uma expressão presente no livro: “quem cria cobra amanhece picado, morou?”. Neguinho, disposto a se vingar de Zé Pequeno, entra armado no baile de despedida de Bené. Num momento em que Pequeno discute com Bené, este recebe acidentalmente um tiro de Neguinho e morre.
É importante observar que enquanto Zé Pequeno busca o poder, Bené com o dinheiro do tráfico busca ascender socialmente, ingressando na turma dos “cocotas” que para ser aceito, investe em sua aparência: usa roupas de marca, pinta os cabelos de loiro. Sua autenticidade conquista o espectador e a “musa” da estória, Angélica, filha de um sargento, que lhe convence sair do mundo do crime, causando inveja a Zé Pequeno.
Os sonhos de Bené e Angélica são triviais perante a situação em que vivem: uma casinha num sítio, filhos e felicidade.
Em sua festa de despedida da Cidade de Deus, onde Bené consegue reunir grupos diferentes, dá-se o clímax do filme: Bené é morto e Zé Pequeno encontra-se sem equilíbrio; afinal Bené simbolizava o coração de Zé Pequeno. A partir desse momento, Zé Pequeno desenvolve toda a sua crueldade.


Corrupção e silêncio

O filme apresenta a corrupção policial, a cobrança de propinas e o “passe” livre dos bandidos em troca de favores.
A introdução da personagem de nome Tio Sam, que vende armas aos bandidos é muito oportuna, pois faz referência ao principal país produtor de armas do mundo, que investe muito dinheiro em repressão de drogas e, no entanto, é tolerante com o contrabando de armas para o terceiro mundo.
Uma cena chocante no filme é a brutalização de duas crianças; uma delas é morta por outra criança a mando de bandidos maiores, para provar sua valentia e manter a lei da favela, que não permite assaltos dentro da comunidade.


Destino trágico

A trajetória de vida de Zé Galinha com todos os seus dilemas morais até entrar para o mundo do crime e reforça a ideia de que um destino trágico, mais que a má índole, força as personagens a romperem com a ordem jurídica e moral da sociedade.


O ser anônimo


Zé Pequeno representa o anonimato do ser humano: sem um nome próprio (antes Dadinho, depois Zé Pequeno); sem um sobrenome familiar (família desconhecida); sem emprego digno; sem endereço fixo (morador da Cidade de Deus); sem identidade; sem passado; sem amor e sem carinho, traz em si toda uma herança que só poderia terminar numa notícia de jornal, virada do avesso pela indeterminação que cumpre seu destino para a morte.


A religiosidade

A religiosidade no filme é retratada nos eventos da terceira fase do filme (“o que era um purgatório… agora virou um inferno…”- referindo-se à guerra entre Pequeno e Galinha). Outro comentário de Buscapé que se vale deste tema é quando ele afirma que Pequeno é o “feioso do mal” contra Galinha, que é o “bonitão do bem”. Um mundo extremamente moralista, dividido entre o Bem (ao qual se associa a beleza, a bondade e a pureza) e o Mal (associado ao feio, disforme, ao arrogante e presunçoso), se integra ao tema da religião.

Ciclos interrompidos

Outro motivo que podemos destacar no filme é o da morte como um ciclo. No filme, as trajetórias dos garotos envolvidos com o crime e o tráfico de drogas parecem seguir um ciclo, no qual estes garotos amadurecem e morrem muito rapidamente. Alguns das personagens que integram o crime em Cidade de Deus parecem atender ao seguinte procedimento: eles entram em cena, conhece-se um tanto deste personagem enquanto ele segue seus objetivos, até que a personagem morre. Quando a personagem se nega ou renega de alguma forma a viver do crime, é morto ou por uma “cobra criada” ou quase casualmente (a ponto de ficar a impressão de que há uma instância realmente divina na Cidade de Deus). Como o filme se passa, cronologicamente, em três épocas distintas, diferentes personagens parecem repetir esta lógica.

Mensagem moralista


Em Cidade de Deus não existem mocinhos. Todos estão envolvidos no círculo vicioso do tráfico de drogas e da violência. E no final, todos são vítimas.
No final do filme, enquanto crianças armadas transitam pela favela articulando seus próximos planos, Buscapé (Wilson Rodrigues) fala de sonhos profissionais com um amigo, simbolizando a esperança, a honestidade (aliás, como muitos da favela), o esforço e a luta que apesar das grandes privações que os moradores da favela passam, pode-se vencer através da coragem e do trabalho decente.

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